Dia desses, como se fosse ontem, branco, meio quente e de muito trabalho. Na correria nem almoço, talvez. Todo dia onde tudo acontecia igual. Quatro horas, despertador na orelha, calça jeans surrada e nenhum café. Estava pra explodir, mas não sabia ao certo como. Sabia de gente doida que atirava na cabeça ou andava pra sempre, por aí. Mas não, não era pra tanto assim. Na real, nem tinha que reclamar da vida, com tanta gente sofrendo, por aí. Não era sofrimento, mas cansaço. Era hora do almoço e saiu pra dar uma volta, buscar uma paz interior: estava nessas de buscar e mesmo a fome que batia importava menos do que a urgência de pensar na própria vida, que nem tinha vinte anos e apresentava sinais de cansaço, sinais de descrença, sinais de invalidez. Queria rumo certo, não dava pra esperar acontecer. Mais cedo discutiu com o cara do trabalho, pediu pra trocar o turno, queria a tarde do sábado livre, mas não deu, porque o outro disse que tinha vontade de passear com a família. E ele não tinha família, não como o outro disse, com vontade: mulher e filho que pedem companhia em uma tarde de sábado. Sentia-se uma peça perdida em um jogo de regras confusas, era segunda-feira, ainda. Não precisava tanta raiva, mas assim estava e com seu consentimento. Ele não queria nada demais com o sábado, mas podia planejar e por não ter meta perdeu o argumento. Pensava com raiva do outro, mas com muito mais raiva de si e seus olhos estavam somente para a calçada. Passos rápidos e pouco firmes, um rapaz de menos de vinte, calça jeans de trabalho e rosto desfigurado, embora fosse difícil o olhar, ele só olhava para o chão. Pensou no tempo e viu no relógio que estava na hora. Parou. Caminho de volta e outro, tinha ainda alguns minutos que podiam alterar o seu dia, quem sabe a vida toda. Não queria voltar pro trabalho, mas pensou na grana e depois pensou na mãe. Não era ordem de importância, mas sem a grana não teria como ajudar em casa. Não sabia do pai porque tudo indicava que ele já tinha morrido; a mãe contava que morreu de tiro porque tinha alma ruim. Quando menino sentia medo que a alma ruim do pai viesse puxar suas pernas, quando fazia coisas erradas e desde então acostumou dormir com a porta sempre aberta. Riu da própria piada que era sua vida inteira. Não sabia direito se alma era herança, mas naquele dia bem podia dar um tiro, conquistar o nome do pai estranho, do pai que devia ter um rosto que parecia com o seu, qualquer rosto com menos de vinte. Ele nem pensava muito nisso, agora só pensava no que fazer com seus vinte minutos de almoço e de algum modo lhe veio no peito esse contentamento por ser filho de alguém que não aguentava com esse mundo. Da mãe devia ter herdado o desencanto, aquela máquina de costura batendo igual coração duro. Sem saber da sua origem, imaginava algum amor, do pouco que ouviu. Foi num esbarrão, ele corria, ela caiu e machucou o joelho. Foi ali que ele começou, no sangue que caia do joelho da mãe, do desejo que chispava nos olhos do pai, talvez. Tudo rápido, como se acontecesse em vinte minutos. O pior de tudo era não saber o que queria do sábado à tarde, não ter argumento, e aqueles vários homens felizes que lhe afligiam na convivência. Era só um querer de liberdade, estar na rua, estar solto, sem rumo. Cansou, decidiu voltar, talvez nem ligasse mais pra isto no fim do dia. Resolveu que era preciso andar mais rápido, comer uma coxinha e tomar um café no bar, enganar o estômago. Tinha andado em círculo, intuitivamente ou por precaução. Na porta do bar levantou os olhos, às vezes alguns colegas aproveitavam o almoço para tomar uma, pra fazer baderna, mas não queria companhia, hoje não, estava magoado. Ninguém, apenas a moça atrás do balcão, a de sempre, mas dessa vez sozinha. Não era bonita, sempre ágil entre copos e troco, sem muita graça, só cumprindo o dever. Parou no balcão, não tinha fritura, mas um pedaço de pizza menos bonito que a moça. Ela olhou e esperou que pedisse, ele olhou e não sabia o que pedir e por um tempo curto, extremo desagradável, olharam-se. Naquele olhar havia uma certeza que ele quis, como o pai quis o sangue do joelho da mãe. Eram olhos firmes, enfrentavam a vida com paciência. Pediu a coxinha, mas tinha que esperar. Os olhos certos daquela moça fritavam lá dentro, fitavam as suas angústias, todas. Sentou com os olhos voltados para baixo, não podia encarar por tanto tempo, o que ela podia pensar? A moça entrou para a cozinha, ele tomava um café sem nem sentir gosto, sentia apenas um estranhamento por ser tomado tão subitamente. Nem pensava mais no sábado, apenas naquela sensação desconfortável de ser olhado, sem pressa. Podia ser qualquer um, homem ou mulher, tanto faz, o importante eram os olhos de certeza, de gente que não sofre com essas coisas da vida, gente para quem pão é pão, não é pedra, não é sonho, é vida e só. Olhar que não faz diferença pra sábado, é só um dia, como qualquer outro, olhar de resgate e recuperação. Quando menino, sábado era dia do catecismo. Se até hoje achava que sábado era um dia especial a culpa era toda da mãe, talvez toda de Deus, que destinou a si este dia. No dia da comunhão a promessa de roupa nova. No íntimo, o desejo do sábado livre era uma promessa de roupa nova. Acompanhou de cabeça erguida a moça que voltava com a cesta de coxinhas. Tudo isto nem lhe passava na cabeça, estava difícil pensar. Queria dizer algo para que ela o olhasse outra vez, era como um presente. Ela estendeu o braço para acomodar as frituras, ele arriscou e segurou firme a mão, com a coxinha quente lá. Ela ergueu o rosto e permaneceram novamente por segundos de desconforto e promessa de comunhão. Assalto. Sentiu o corpo gelado, ainda seguravam-se, não sabia o que fazer. Ela soltou, jogou-se contra a parede, os olhos presos no homem que entrava o bar e agora os ameaçava. O corpo entendeu, antes da cabeça, se jogou para trás do balcão e agora estava junto dela. Entrou outro, a arma ali, virada pra eles, a coxinha desfeita na sua mão. Pensou se aquela coragem do olhar de minutos atrás seria suficiente para salvar a sua alma ruim e escapar do tiro que se anunciava do outro lado do balcão. O outro homem puxou a porta com força, podiam pegar o dinheiro e ir embora, mas iam ficar ali, talvez fugissem da polícia, vai saber. Os dois homens se sentaram, uma das armas descansando ao lado do copo de café, a outra pronta. Os corpos escorregaram pela parede engordurada, lado a lado, cúmplices pela ordem de silêncio. Ela estava com a cabeça entre as pernas, respirando fundo, sem barulho. Ele baixou a cabeça entre as pernas e sorriu. Algo estava mudado, enfim.