Menina está sentada no sofá. Ela segura um vidro de esmalte e pinta as unhas. Entra uma mulher na sala.
MENINA – Quem é você?
MULHER – Eu vim buscar a encomenda.
MENINA – Eu perguntei quem é você, não o que está fazendo aqui.
MULHER – Eu sou a mulher que busca encomendas.
MENINA – Certo. Mas eu não estava esperando ninguém agora.
MULHER – Achei que estivesse. Eu só apareço quando as pessoas estão prontas para entregar suas encomendas. É o meu trabalho.
MENINA – Você pegou o endereço certo? As numerações dessa rua estão bem esquisitas. Talvez você tenha se confundido. Talvez essa encomenda esteja na casa ao lado.
MULHER – Talvez essa encomenda seja aquela caixa grande que está atrás do sofá.
Silêncio.
A mulher olha atrás do sofá.
MULHER – É uma caixa muito grande. Parece pesada. Você pode me ajudar a levá-la até a rua?
MENINA – Eu não posso tirar essa caixa daí. Ela é pesada assim porque serve para sustentar o sofá. Se eu tirá-la daí, o sofá cai para trás.
Silêncio.
A mulher olha para o sofá.
MULHER – O sofá tem perfeitas quatro pernas. Ele pode se sustentar perfeitamente sozinho.
Mulher pega a caixa com muita dificuldade. Ouve-se um grito de homem vindo de dentro da caixa. Mulher assusta-se e deixa a caixa cair.
MENINA – Está vendo? A caixa gritou. Ela não quer ir com você. Você nem consegue carregá-la. Como é que vai carregá-la até o destino dela? Ninguém te chamou aqui, deixe a caixa onde estava.
MULHER – (Pega a caixa novamente) A sua casa está localizada em uma ladeira. Eu só preciso passar com a caixa pela porta da sua casa e colocá-la no chão. Assim ela trata de descer sozinha até o destino final.
MENINA – MAS ELA VAI SE MACHUCAR INTEIRA.
Ouve-se novamente o grito masculino vindo da caixa.
MULHER – Um pouco. Mas eu não posso carregar esse peso todo sozinha. A ladeira se encarrega disso.
Mulher caminha em direção à saída, carregando a caixa com muita dificuldade.
MENINA – (Entra na frente da mulher) Se você levar essa caixa eu vou junto. Eu me enfio dentro dela e você vai me levar junto.
MULHER – (Tenta desviar) Me desculpe, mas você não faz parte da encomenda, portanto não pode entrar na caixa. Além disso, você nem cabe dentro dela.
MENINA – Não importa. Mesmo que algumas partes do corpo fiquem para fora da caixa, eu vou entrar. Eu gosto de entrar aí. Algumas partes do corpo ficam para fora, mas as partes do corpo que ficam para dentro se sentem confortáveis e quentinhas. Se eu te der essa caixa agora eu vou ficar solta no frio e eu não quero. Se a caixa for, você vai me levar junto.
Menina avança em direção à caixa, mulher desvia e menina cai no chão. Ouve-se novamente o grito masculino. Mulher caminha em direção à saída.
MENINA – Moça, se você der mais um passo, eu vou pular em você e eu vou engolir essa caixa. Aí você só vai conseguir pegá-la se rasgar todos os meus órgãos primeiro.
MULHER – A caixa não cabe dentro de você. Você não consegue engolir. Se essa caixa fosse sua, ela ficaria para sempre na sua casa. Mas você e eu sabemos que ela não é sua. Espero que compreenda que este é o meu trabalho.
MENINA – (Levanta-se bruscamente com os olhos cheios de lágrimas) Você tem cara de bicho, sabia? Eu soube assim que você entrou aqui. Eu quase pude ver as penas saindo de você. Penas asquerosas e flutuantes. Nenhuma garra, nenhuma presa, nem nada que nos segure. Somente penas completamente irritantes, completamente inconstantes, que só servem para fazer cócegas e causar espirros. Você é uma mulher inteirinha de penas. Inteirinha cheia de flutuações, cócegas e outras coisas que irritam. As suas penas não te protegem e agora você quer que eu fique desprotegida também! Eu não tenho culpa dessa sua cara ridícula de bicho. VOCÊ NÃO É BEM VINDA AQUI, EU NÃO ESTAVA ESPERANDO VOCÊ, DEVOLVA AGORA A MINHA CAIXA.
MULHER – (Sai da casa) Muito obrigada pela compreensão.
Menina senta-se no sofá. Ouve-se um grito contínuo de homem do lado de fora, que vai perdendo volume aos poucos. Menina come o esmalte que está dentro do vidro.