Laerte, um ancião, da plateia
Não estou bem do coração. Arrancaram do peito meu órgão e colocaram o de outro. Sou estrangeiro em minha própria costela. Sou esse que me enfiaram ou sou o que está ao redor? Essa minha ventura: envelhecer a espera de um coração que partiu. E aguentar o meu sangue passando por entre átrios e ventrículos estranhos ao meu gene. E temer a morte do gene que é meu e foi pro mundo. E suportar o vazio. E esperançar.
Abriram um peito que não devia ser aberto. Levaram do meu seio paterno um filho para uma guerra que não era dele. Deixaram um menino sem pai cuidar de uma mãe sem vontade. E eu, envelhecendo miserável, esperando uma espera que não era minha.
É possível agora quererem colocar em meu peito meu antigo coração? Que medicina é essa que acredita que um órgão por tanto tempo afastado de mim seria encaixado neste buraco que deixou? Meu coração partiu para outros corpos, meu corpo criou um coração de espera e agora não sabe se aquele que partiu é ainda meu.
Meu filho voltou da guerra e a guerra ficou em si. Foi. Vinte anos se passaram. Voltou. Meu filho fez a guerra em seu lar. Matou os invasores. Matou o que pulsava em sua casa, expulsou o que não era pertencente ao que recordava de seu lar antigo. Quis ser o coração de Ítaca novamente. Bem-vindo, filho, mas entenda que não é mais seu esse corpo. Entenda que não lhe pertence mais a sua antiga casa. É justo se afastar por tanto tempo e querer que nós, abandonados, nos conformemos em nossa antiga forma? Nosso corpo aprendeu a bombear sangue sem o seu coração.
Meu filho, a sua viagem era viajar. A nossa, esperar. Ao chegar em Ítaca, você acredita ter alcançado um objetivo. Mas ele não devia ser alcançado. Seu objetivo é buscar, não encontrar.
Vá embora. Queira voltar, mas não volte. Deixe esse novo coração bater em nós sozinho. Deixe a espera, a angustia, a esperança agir em nosso peito. Nem tente nos salvar. Meu filho, antes pretendentes que queiram usurpar seus bens do um Ulisses envelhecendo em Ítaca. Antes aventuras e buscas sem fim, do que esse final mediocremente feliz. Continue buscando seu lar. Continue nos fazendo esperar por você.