Chove. Aqui dentro a lareira esquenta meu velho corpo. Enquanto o machado que ainda respinga sangue dorme ao lado.
(silêncio)
Lava-me os pés. A minha raiz cheia de dores, meu contato ao chão, o fio que confio e aterra. Lava-me os pés envelhecidos antes que mofem.
A voz que ouço me bate como um trovão no deserto anunciando a chuva esperada. Mas é claro que não o é. Não o pode ser. Derramo água fria e água quente nessa bacia para não ferir ainda mais sua pele de errante.
Ele que me carrega agora é regado. Aquele que me ampara sempre, nesse momento é amparado. Purifica-me. Lava-me os pés triste mulher. Você que é cega. A vida por pouco não lhe voou do corpo, mas seus olhos acabaram por cansar de ver e não perceber. A ausência de visão não faz diferença para aquela em que essa nova lei regula a vida e que antes mesmo nunca havia enxergado. Lava-me.
Reconheço os pés machucados de um andarilho a um único toque. Mas agora, apalpando seu corpo e limpando sua pele, enxergo a cicatriz. Marca que registra a aventura de guerreiros, portanto única em cada corpo. Mas é claro que não o é. Não o pode ser.
Olha. Não diga bobagens. Você que é fria como um prato deixado de canto. Se antes não enxergava, agora não vê. Sinto muito. Apenas lava-me. É pedir tanto?
Posso ser cega, mas não como pensa, você sim é tomado por fraca memória. Quando te dei meu coração arrancas-te meus olhos, porém esquece que cego também é a justiça.
Cala-te e continua, pare de cacarejar, não vê que estou no meu momento.
Ao toque do seu reconhecido pé e a minha carícia traiçoeira já manjada, pendulando e ancorando a cabeça com a ajuda da gravidade, você relaxa. A vingança é feminina, e com uma força que desconheço arranco-te o pé com o machado antes adormecido ao lado, sou inesperada, antes que se dê conta é só um manco que guincha como um porco traído pela própria arma. A ideia que me corroeu por anos como uma úlcera agora é afagada por mim Odisseia, cega e justa.