Mar entre Nós

Meio dia. Portões abertos diante dos meus olhos. O som de ferro que antes trancou, libertava. Vinte anos de espera paciente e por trás dos portões, Ulisses. Estávamos então, um para o outro, em vinte anos. Talvez o abraço fosse esperado, mas não pudemos: tudo o que estava por dizer cortava feito navio partindo pra guerra, força cortando águas e vidas de homens. Andamos algumas quadras, tudo novo e estranho, Ulisses falando de conversas fantásticas. O que eu teria pra contar? Todas as conversas que sozinha fiei em mortalha? Noites e noites sem estrelas e deuses; Ulisses estava envelhecido. Por que você partiu? Ulisses não tinha respostas mágicas, silenciou e perdeu os olhos para o mar: talvez não existisse também razão para voltar. Tantas as dores que se esvaziavam no recorte daquele momento: eu sentia como recomeço. Não sei pra onde ir. Ulisses ofereceu caminho, aceitei como quem consente o perdão e volta pra casa. Passaram os dias, cada um deles com a própria dificuldade em retomar a vida que se perdeu, a vida que era assunto proibido em nossa casa. Eu dizia a Ulisses: nossa cama estará pronta, sempre que você quiser, mas dentro era um vago desejo de partida e destruição: nada ali me pertencia ou necessitava de mim, toda a história estava contada pelas horas de ausência de nós.

Meio dia. Porta fechada às minhas costas e a cor da rua nos tons dos meus olhos. Caminhei em linha reta, sem saber para onde, sem olhar o que ficava. Nos pensamentos uma pequena alegria de liberdade e um gosto amargo de Ulisses na garganta. De repente Ulisses era a minha prisão e o mundo era o mar, envolvendo terras distantes que guardavam os meus sonhos de menina e as canções alegres que um dia eu trouxe no peito. Entrei no primeiro ônibus e, embora não soubesse pra onde seria levada, era minha a vontade: ir. Passei a tarde inteira assim, de ônibus em ônibus, o vento reencontrando o meu rosto e a cidade navegável. Tentei entender Ulisses: não é fácil voltar. Quem era essa mulher que só sabia esperar? Senti medo da rua, da noite que cobria meus ombros, voltei pra casa. Quando entrei, nenhuma palavra, Ulisses ainda não tinha chegado. Arrumei nossa cama, e esperei.

Por vinte anos esperei o regresso de Ulisses. Um dia existiu o mar entre nós, mas eu trouxe Ulisses de volta, no dia em que a deusa falou dentro de mim: parte Penélope, lança teu barco ao mar, com as bênçãos de Posêidon.

Meio dia. Toda a trama da espera desfez-se em partida, e refez-se em encontro, e desfez-se pelo movimento das ondas do mar distante. E o fio que tecia partiu, ponta solta sem saber pra onde ir. Eu só sabia ficar, agora partir: para onde foi Ulisses?

Quando Ulisses chegou, eu o matei.

Quiseram os deuses que fosse assim. 

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