Laboratório químico. Mesa com diversas facas e vários líquidos em tubos de ensaio. Uma cientista segura uma caixa azul.
CIENTISTA – (Coloca a caixa em cima da mesa. Pega uma faca para abrir a caixa, porém, por mais que passe a faca, a caixa não se rompe.) Estranho… Deve estar cega… (Tenta abrir com outra faca, mas a caixa continua intacta. Surge, atrás da cientista, uma espécie de vulto ou sombra negra.)
SOMBRA – Você não vai conseguir com as facas. Tente o ácido.
CIENTISTA – (Plácida, sem se alterar com a presença da sombra, ainda tentando abrir a caixa com as facas) O ácido pode corroer o que tem dentro. Não quero correr esse risco.
SOMBRA – Você só vai perder tempo tentando com as facas. E qual o problema se o ácido corroer um pouco o que tem dentro? Você já sabe o que tem dentro.
CIENTISTA – Não, eu não sei. Só sei que pode ser algo muito importante.
SOMBRA – Você recebe uma caixa por semana. Você sabe perfeitamente o que tem dentro de todas elas e o chiqueiro já está cheio.
CIENTISTA – Tenho certeza que dessa vez não é um porco.
SOMBRA – Você recebe porcos todas as semanas, e, sinceramente, eu não consigo entender o motivo. Eu não agüento mais comer carne de porco. Eu não agüento mais ouvir barulho de porco. Eu não agüento mais dar lavagem para porco. Você precisa se ocupar com descobertas científicas, e não com uma criação de porcos. Eu prefiro que você jogue ácido na caixa e que esse outro porco morra de uma vez.
CIENTISTA – (Pára de tentar cortar a caixa) Eu disse que tenho certeza que dessa vez não é um porco. Veja: A caixa é diferente das outras. As outras caixas tinham cor de papelão. Essa caixa é azul.
SOMBRA – E eu tenho certeza que você precisa de óculos. Há vários pontinhos com cor de papelão nesta caixa. Ela não É azul, ela ESTÁ azul. Esta encomenda deve ter sido extraviada. O destino dela era outro e se perdeu no caminho. E caiu na água. Por isso ficou tingida de azul. Azul-cor-de-água.
CIENTISTA – Esta encomenda não foi extraviada, esta encomenda é para mim. Ela não caiu na água, e mesmo que tivesse caído, é óbvio que não ficaria azul. Acho que não preciso te dar uma lição sobre a transparência da água…
SOMBRA – Você não sabe nada sobre a água, nem sobre cair na água. A água é azul e ficamos azuis ao mergulhar.
CIENTISTA – Certo. Agora pare de falar besteiras e me ajude com a caixa.
SOMBRA – Use o ácido, eu já disse.
CIENTISTA – OK.
Cientista pega um tubo de ensaio e derruba o líquido sobre a caixa. A caixa não se move, não se abre e não se dissolve, porém, um grito masculino sai de dentro dela.
SOMBRA – Eu disse. Outro porco.
CIENTISTA – Não foi um grito de porco! Ouça!
Cientista joga outro ácido sobre a caixa. Grito masculino ainda mais desesperado.
CIENTISTA – Ouviu? Não é um grito de porco! Eu sabia!
SOMBRA – É um grito de porco sim. A diferença é que este está mais bem preso do que os outros. A caixa está muito bem lacrada e o grito dele fica abafado. Deve ser aquele tipo de caixa que só abre por dentro. Se ele quisesse pertencer ao seu chiqueiro, já teria saído. (Pega a caixa) Vamos jogar fora. Isso é apenas perda de tempo e de espaço.
CIENTISTA – Se ele quisesse pertencer ao meu chiqueiro já teria saído?
SOMBRA – (Saindo com a caixa) Sim. Se ele quisesse ser um dos seus porcos, já estaria do lado de fora.
Silêncio.
CIENTISTA – Calma. Eu vou ficar com a caixa mesmo assim.
SOMBRA – Você está maluca.
CIENTISTA – NÃO SAIA DAQUI. Eu disse que vou ficar com a caixa mesmo assim. Eu sinto ternura por essa caixa azul, porque ela não se abre. Ela é maravilhosa assim, imóvel. Eu costumava olhar os porcos no chiqueiro e sentir muito ódio e sentir muito ódio da carne de porco no meu prato e sentir muito ódio da lavagem dos porcos. Os porcos são muito agitados e fazem barulho o tempo todo, só sabem comer e se sujar, até a comida deles era sujeira, até a carne que eu comia parecia barulhenta e suja, mas os porcos apareciam aqui, você entende? Eles apareciam e eu não poderia abandoná-los, eu não poderia me livrar deles. Mas se há um porco nessa caixa, ele é quieto porque tem o grito abafado e ele é limpo porque caiu na água. Eu quero ser a dona dessa caixa porque ela não se abre para mim. Eu quero ser a dona dessa caixa porque ela abriga um animal que não quer ser meu animal. Isso é tão doce! Eu poderia transformar este laboratório em um quarto repleto de caixas azuis, já que o porco gosta da prisão, já que o porco gosta do esconderijo. O porco poderia mudar de caixas enquanto eu estivesse dormindo. Ao acordar, eu brincaria de adivinhar em qual caixa ele está. Eu brincaria de jogar ácido em todas as caixas até descobrir…
Longo grito masculino.
SOMBRA – Ele gritou porque não gostou nem um pouco dessas suas ideias.
Silêncio.
CIENTISTA – Ele não gostou?
SOMBRA – Não, ele não gostou.
Silêncio.
CIENTISTA – Por gentileza, retire-se com essa caixa tingida. Por gentileza, coloque essa caixa no lixo. Por gentileza, coloque essa caixa no lugar onde eles queimam lixo. Deixe que a caixa se queime, deixe que a caixa vire pó. Por gentileza, retire essa caixa da minha frente agora.
SOMBRA – Sim, senhora.
Sombra sai com a caixa. Cientista bebe o líquido de um dos tubos de ensaio. Ouve-se o barulho de porcos ao fundo.